Noite de insônia. Levantou da cama
aborrecida. Era a manhã fria de um dia qualquer de agosto.
Enquanto o tempo passava, olhava
pela janela esperando a chuva parar. Percebeu que não havia tirado o pijama e
tampouco ligou para isso.
Olhava-se no espelho procurando
algum traço marcante, alguma coisa diferente que a fizesse singular. Não achou.
Estava quase na hora de sair de casa e a chuva diminuíra.
Como de costume, pegou seu all star
branco, já amarelado pelo tempo. Enquanto fazia o entrelaço do cadarço,
refletia em como a vida andava em um rumo como sempre sonhara e ainda assim
sentia que faltava algo.
Deu um laço. Tristonha, pensou no
modo como as coisas sempre se completavam e, por fim, acabavam daquela maneira:
Interligadas.
Os conflitos familiares, a repressão
dos desejos, o desgaste diário... Todas as coisas ruins que passara a noite
lembrando e a fizeram levantar amargurada e sem confiança na vida. O laço se
desfez e virou nó: ela.
Ao perceber isso, quis gritar. Uma
vontade tão intensa e verdadeira, que não cabia em si.
Vestiu-se de silêncio e foi para
rua. Pensava em fugir da rotina por um dia, mas tinha compromissos e era fraca
demais para esquecê-los. Por hoje, não queria mais aquele ar tão pesado, aquela
cidade tão vazia, aquelas pessoas tão pequenas. Não pertencia aquele mundo.
Não queria mais se ver com os olhos
daqui. Pensou em ir morar com o Pequeno Príncipe no asteróide B 612. Sorriu ao
notar que, mesmo triste, sempre se lembrava daquele livro tão meigo e
intrigante que a mudou tanto. Então, quase sem querer, começou a lembrar de
tudo que a compôs até aquele momento.
Seus livros, seus filmes, suas
músicas, suas viagens, suas poesias, suas fotos. Chorava sutilmente, ainda com
a vontade de gritar. Se deu conta que o all star dono do cadarço que
entrelaçava traumas e tantos outros sentimentos ruins, tinha outro pé. Um par.
E aquele era o pé esquerdo. Porque o direito, decidiu ela, seria, a partir
dali, um entrelaço de coisas boas.
Ao entrar no ônibus, começou a
brincar sozinha. Pode-se notar um quase sorriso. Fechava os olhos e abria já em
outro lugar. Mudava de lugar em facção de segundos. Quase tão rápido como seu humor estava mudando. A manhã cinzenta tornou-se uma tarde quase colorida.
Mas a vontade de gritar ainda estava ali, contida dentro de si. Olhava seus
cadarços, tão doídos e tão alegres, diferentes e complementares. Batia um pé no
outro, tentando fundi-los. Sorria por não conseguir, mesmo sabendo que, por
dentro, eles eram um cadarço só. Um só entrelaço.
Como em mais uma das suas
brincadeiras solitárias, decidiu fazer uma lista dos laços, com alguma
pretensão de desfazer os que não lhe agradava, mesmo sendo impossível. Algumas
coisas fogem da nossa escolha.
Começando com o pé direito, para não
perder a sorte. Pensou nos seus estudos. Conseguira passar nos cursos que sempre desejara e acabou conseguindo
conciliar os dois cursos, o que a deixava com um tipo de cansaço perfeito.
Tinha, por questão de ordem, que falar sobre um contra agora. Mas quis, pelo
menos uma vez na vida, quebrar a regra. Quando pensou na expressão “cansaço
perfeito”, lembrou de tê-la lido em um livro que havia gostado muito, embora
geralmente odiasse Best seller.
Consequentemente lembrou-se de sua estante cheia de livros que a alimentava um
pouquinho, todos os dias. Era o que ela tinha de melhor. Sem poder fugir, olhou
para o pé esquerdo. Lembrou-se da relação estranha que tinha com os pais. Uma
coisa de amor e negação. Os amava e era amada. Sabia disso. Mas não era aceita.
Era diferente de todas as mulheres da família. Por querer insistir em dois
cursos que, ouvia ela, não a daria um futuro digno. Por não querer casar. Por
não pensar em filhos. Por não se fazer presente na maioria das reuniões
familiares. Deu de ombros. A vida toda, tudo que ouvia sobre isso, apesar de
magoar, entrava por um ouvido e saia por outro. Então se lembrou da sua
madrinha que, apesar de não ser da família, era sua família completa: sua mãe,
sua irmã, sua prima, sua amiga. Mas, em contra partida, lembrou-se de seu
padrinho que, desde que se separara de sua madrinha, separou-se também da
afilhada. Não se falavam há sete anos. Lembrou então da sua infância, mesmo
quase não tendo sido criança. Sempre foi a mais nova. A convivência com pessoas
mais velhas exigiu um amadurecimento forçado. O que foi bom e não foi. Sempre
muito séria, sempre muito adulta. Lembrou da adolescência e da única grande
paixão que já sentira, que criou um bloqueio para qualquer sentimento maior que
tentasse ter por outra pessoa. Inclusive um repulsa para falar e pensar sobre
amor. Então quis parar de pensar.
Olhou o relógio que estranhamente
gostava de usar no braço esquerdo. Enganou-se com a contagem do tempo. Todos
aqueles pensamentos aparentavam uma eternidade, mas, embora quisesse, ela não
havia perdido a hora. De algum modo estranho seria mais leve enfrentar o resto
do dia depois de toda aquela reflexão.
Faltavam poucas quadras para chegar
ao ponto final. Como não queria mais pensar em nada, tirou o fone de ouvido da
bolsa e o mp3. Fechou os olhos para escolher uma música aleatória. O dedo parou
de passar as músicas. Começou a tocar The Beatles. Ainda de olhos fechados,
cantarolava "help me, get my feet back on the ground..." dentro do
ônibus sem se importar com os olhares desconhecidos de estranhamento que a
cercava. Até sorria discretamente deles.
Chegou à parada que tinha que
descer. Sem perceber que o laço do cadarço esquerdo havia se desfeito, tropeçou
e caiu ao sair do ônibus. Sorriu e quis gritar. Tirou o tênis branco amarelado.
Guardou o direito dentro da bolsa, mesmo sujo, e deixou o esquerdo no chão.
Levantou e saiu andando descalça, sem olhar para trás. Livre, por fim, gritou.